segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Dia dos Raios (Março de 2011)

O ar na 3ª Acrópole estava abafado, prenunciando uma trovoada quente. E o céu plúmbeo confirmava a acumulação de energia.
Dragosha aproximava-se velozmente do Edifício do Concílio, apreciando a uniformidade cinzenta entre a extensa malha urbana e os céus. Desde muito nova que adorava trovoadas, pois os relâmpagos transmitiam-lhe alegria.
Decidiu penetrar no centro do cumulonimbo que se desenvolvia à vertical do Parque-Tanque e optou por uma ascenção curta até ao topo da núvem, a fim de executar uma experiência científica que há já alguns Centiciclos de Gaya andava a preparar. Contando do Centro Geométrico da cidade, encontrava-se um Parque-Tanque a cada 5 léguas e a sua contrução fora realizada sobre cinco eixos com ângulos de 72º entre eles. Dragosha encontrava-se já a voar sobre o 2º Parque Tanque do Eixo 198.
O Templo da Dominância geria os Parque-Tanques, entre outras Instituições da gigantesca Cidade-Estado. Aqueles eram, basicamente, tanques cónicos com 200 braças de altura por 150 braças de raio na base, que albergavam culturas de cianobactérias, elegidas com biossistema fotossintético para a produção de oxigénio diatómico.
Dragosha era a Engenheira Metabólica Sénior dos Parque-Tanques no Eixo 198 e, na qualidade de Especialista em Citossíntese, desenvolvera os Heterocistos Z2 e Z3, células artificiais cujos metabolismos seriam, em teoria, responsáveis pela biotransformação das Espécies Reactivas de Azoto e Oxigénio e pela bioacumulação e estabilização de metais pesados presentes na atmosfera, respectivamente. Estes heterocistos artificiais não requeriam ausência de oxigénio para os metabolismos específicos, ao contrário dos seus semelhantes naturais, cujo metabolismo específico de redução de azoto atmosférico a amoníaco necessita de pressão parcial intracelular nula no referido gás.
A citossíntese e optimização dos sistemas multienzimáticos artificiais correra de forma muito satisfatória, mas o arranque do funcionamento in vivo não se processava. Dragosha fizera uma análise exaustiva das condições de cultura e das variáveis envolvidas e concluíra que o potencial de membrana estaria a bloquear cascatas de sinal imprescindíveis para a expressão dos novos sistemas enzimáticos. Ocorrera-lhe uma ideia radical para modificar o potencial de membrana já com as células em cultura.
O plúmbeo céu escureceu ainda mais e Dragosha, encontrado-se à vertical do Parque, colocou as suas asas membranares em delta, iniciando a subida. Pretendia mergulhar no cumulonimbo pelo topo, efectuar uma descida a pique até à distância de arco eléctrico, que iria depender da carga eléctrica acumulada na núvem e da diferença de potencial em relação às águas superficiais do Parque.
Enquanto se elevava nos céus, Dragosha deleitou-se com o alargamento da perspectiva sobre a Cidade e com a vastidão do horizonte monocromático que se lhe abria. A expansão da construção fora tendencialmente circular e cobria actualmente uma superfície com 50 léguas de raio.
No centro geométrico da Cidade erguia-se a Estrutura Quadripolar, constituida pelo Lago da Memória, a Torre do Segredo, no centro do lago, e o Tri-Reactor, cujos edifícios estavam construídos nos vértices de um triângulo equilátero com 3 léguas de lado, estando um dos vértices do triângulo alinhado com Sul.
Dragosha contemplou a Estrutura Quadripolar e sorriu com orgulho, à vista da Torre e dos 3 Reactores de Fusão Nuclear Quente. Mu 1 estava bem organizada, considerou ela. Na eventualidade de um ataque de Thulé ou de Poseidon, os elementos do Partido Interno-Interno (60 membros) entravam na Torre do Segredo e activavam os motores gravitacionais, permitindo algumas opções de fuga ou de ocultação espacio-temporal.
A ascenção de Dragosha terminou e ela retirou o bastão de platina da bainha dorsal. As medições do exofato senciente indicavam-lhe 0.94 Unidades de Carga Electrofraca, correspondendo a uma distância de arco eléctrico de 57.35 braças acima da superfície líquida do Parque-Tanque.
Dragosha iniciou o mergulho vertical, activou remotamente o alarme antiaéreo, para evacuar todos os obreiros e obreiras e desactivou os escoadores de carga estática do edifício. De acordo com os seus cálculos, a manipulação de um tremendo relâmpago, direccionado ao meio de cultura possibilitaria o início do funcionamento dos heterocistos Z2 e Z3.
A velocidade crescente da descida excitava Dragosha, que sentia a descarga de adrenalina a percorrer-lhe a espinal medula, a expansão espinal/cortical e o encéfalo, enquanto uma miríade de instantâneos mentais fragmentários lhe vinham à memória. Destes, os mais recorrentes eram as memórias visuais das fábricas extremamente poluentes que se encontravam em plena laboração por toda a Cidade. A estabilidade social obrigava a que fossem atribuidas tarefas laborais frequentemente contraditórias, de modo a manter as massas ocupadas com trabalho. O Continente Lemuriano era dominado por três cidades de 600 milhões de habitantes cada uma e experimentara por duas vezes uma abertura democrática, com consequências catastróficas. Evoluira-se naturalmente para um regime totalitário urbano-tecnológico em que o sector de produção de alimentos era totalmente automatizado e controlado remotamente pelos membros do Partido Externo-Externo.
A contagem para o ponto de descarga, calculada com precisão pelo exofato, decrescia no visor monocular esquerdo e Dragosha rodopiou o bastão de platina, iniciando a formação de uma esfera de plasma em seu redor.
Dragosha continuava cogitando na Organização da Lemúria, recordando que o Partido Externo-Externo era também responsável pela definição do Intervalo Comportamental Padrão e pela manutenção coerciva das massas dentro dos limites daquele. Para isso, cada um dos 300 mil membros era pessoalmente responsável pela chefia de 2000 elementos das Massas Obreiras. Em caso de anomalias, eram enviados relatórios aos membros do Partido Externo-Interno. Este, com 3000 membros, era responsável pela Milícia Unitária, pelo controlo do tecido industrial clássico e tecnológico, pela maquinaria repressiva/punitiva e pelos sistemas de saúde e de educação/doutrinação. Os três membros de topo do Partido Externo-Interno contituiam o Triumvirion, a Entidade Presidencial de cada cidade. Os três elementos do Triumvirion eram os únicos que tinham conhecimento da existência do Partido Interno-Interno. Este, com os seus 60 membros, era responsável pelas Tecnologias Avançadas, pela Estratégia Planificada Civilizacional e pela gestão da Estrutura Quadripolar, cujo perímetro era absolutamente interdito, sendo fomentada a crença de que se encontrava desocupada, tendo um funcionamento automático e controlado pelas 7 Entidades Sencientes da Rede de Informação do Partido, o único sistema de informação a funcionar no Domínio Lemuriano.
A esfera de plasma brilhava com um esplendor branco-azulado e, quando a contagem atingiu zero, Dragosha interrompeu bruscamente a rotação do bastão de platina, apontando-a na direcção da superfície das águas do parque tanque, enviando uma gigantesca descarga para a serpentina de ouro que no dia anterior colocara no tanque, para actuar como pólo oposto.
O Parque-Tanque, cujo meio de cultura tinha um tom cinza-azulado, brilhou por um segundo com uma oscilação de tons entre o roxo e o dourado e retomou a tonalidade normal.
Dragosha abriu as asas membranares, reduziu rapidamente a velocidade e terminou o mergulho com uma curva elegante a rasar as paredes transparentes do Parque-Tanque. Voltou a subir e aguardou pela telemetria, em vôo circular sobre o Parque-Tanque. Os dados de telemetria atmosférica e do meio de cultura iniciaram o input, confirmando os cálculos teóricos de Dragosha. Durante o resto desse dia, as massas obreiras e os membros do Partido Externo-Externo assistiram apreensivos a uma série de trovoadas que se dissipavam após um único relâmpago saltar para cada um dos “tanques azuis”.
Após cessar a série de descargas electrostáticas, Dragosha voou até ao perímetro da Estrutura Quadripolar e penetrou na Torre do Segredo, pousando na Plataforma de Aterragem, junto a um veículo Vril, um disco voador com motor gravitacional, contemplando o símbolo da Federação pintado na fuselagem: um raio azul com um miu prateado sobreposto.
Dragosha era bela e terrível, fazendo lembrar um morcego humanóide dotado de uma força descomunal, que os nanomotores acoplados à mitocôndria artificial do exofato possibilitavam. Contemplou Mu 1 do topo da Torre do Segredo, com a altivez típica de um membro do Partido Interno-Interno e retirou o capacete do exofato, revelando um rosto de uma beleza morena e invulgar, adornado por cabelos lisos e pretos. Enquanto contemplava a cinzenta cidade, Dragosha releu a circular P.I.I. relativa ao aumento de imigração atlante, toda da casta dourada. Os seus penetrantes olhos violeta faiscaram com ódio, enquanto considerava que os energúmenos orgulhosos e auto-instituidos "Paladinos de Gaya", afinal, tinham problemas graves na pseudo-utopia...

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