quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Gilgug (Outubro de 2009)

Habitava um estranho barco. Navegava nas águas, ou ancorava nas margens, do Mar Central, designação arcaica que insistia em utilizar, sempre que se permitia dispender algum tempo em devaneio. Alimentava-se do que pescava, de algumas algas cujo sabor apreciava e de fruta, sempre que a podia colher.
Costumara embarcar sem destino ou função definidos, plenamente confiante na sua capacidade de trabalho braçal e nas suas excepcionais condições de saúde. O fluir dos tempos tornou-o solitário e desligado, sendo a comunicação com os seus semelhantes progressivamente mais penosa, até dolorosa.
Tal desconforto levou-o a construir o seu estranho barco e, depois, a optar por não utilizar a voz para comunicar. A ausência de comunicação, primeiro verbal e depois total, aliada ao estado de existência solitária, ou, de forma mais correcta, o "estado sozinho", eram-lhe confortáveis. Dir-se-ia que a vida de nómada do Mar, errando sem pressa nem desejo, lhe mantinha a psique longe da tristeza e da felicidade. E muito longe da dor e do prazer. De um modo gradual e suave, deixou de acostar às zonas com maior fixação humana, nunca ousando abandonar os limites das águas que considerava senhoras da sua existência.
Um dia em que navegava indolente e afastado da costa ocidental, foi perturbado pela presença de um enorme barco de aspecto sinistro. De um dos bordos deste, desceu um bote de côr e textura desconhecidas, com um grupo de homens vestidos de igual no seu interior. Estes aproximaram-se da sua embarcação de madeira de cipestre e, quando a cerca de 60 côvados, apontaram-lhe uns paus ocos e cinzentos, que lhe causaram uma sensação desconfortável.
Um dos homens tentou comunicar verbalmente com ele, mas nada compreendeu do som por ele emitido. Outro homem sugeriu-lhe, por intermédio de gestos, que levantasse os braços e achou sensato obedecer à indicação. Os homens abordaram o seu barco. Aquele que gesticulara aproximou-se cautelosamente e estendeu-lhe uma estranha túnica, com espaço para os braços e um forte odor a pez. Aceitou a túnica com gravidade, vestiu-a e apreciou o facto de o homem ter voltado a palma da mão direita para si.
Foi conduzido no pequeno bote com naúseas crescentes. O fedor a pez e ferrugem parecia emanar de todos os objectos que estes homens manipulavam. Embora satisfeito com o reboque do seu barco e por não terem exercido violência sobre si, não conseguiu evitar os vómitos quando foi içado para bordo da grande embarcação. Os homens, aparentemente assustados, emitiram sons entre si e decidiram levá-lo rapidamente, através de um labirinto de corredores de metal, até uma sala interior branca, que cheirava a sândalo, onde era aguardado por um homem de barba e cabelos brancos, vestido com uma túnica branca com botões.
O odor a sândalo e a alvura da sala reconfortaram-no e conseguiu recuperar o domínio das entranhas. Nesse instante, observou aquele que lhe entregara a túnica a segredar algo ao homem de barba. Este fez um gesto com a mão e emitiu alguns sons, talvez instruções para ser deixado a sós com o... prisioneiro - apesar da ausência de violência, sentia-se impotente e afigurava-se-lhe ajuizado acatar as instruções que recebia.
Uma vez a sós com o homem de barbas, reparou como este o olhou intensamente nos olhos, levantou a mão direita, de palma voltada para si e lhe sorriu. Prontamente lhe retribuiu o sorriso, pleno de alívio e satisfação.
O homem de barba e bata tomou um pequeno objecto cilíndrico e separou uma parte dele, expondo uma secção cónica curta que terminava numa fina ponta de metal. Tomou também um rectângulo de um material branco e maleável e, com o objecto pontiagudo, traçou uma forma de escrita no rectângulo branco, voltando-o para si.
Gilgug olhou para o rectângulo branco e não pôde conter uma gargalhada, surpreendendo-se com o timbre ressoante e o tom muito grave da sua voz. Embora a grafia fosse um pouco invulgar, tratavam-se, indubitavelmente, de caracteres hebraicos. Teria preferido grafia suméria, mas a comunicação estava assegurada.