terça-feira, 31 de maio de 2011

Afrik-Ilha (Julho de 2005)

O bio-led de aviso começou a piscar no visor e o ruído agudo e intermitente soou, em simultâneo, no auricular esquerdo, correspondendo a uma avaria num dos sistemas de apoio fisiológico. Orugana resmungou de si para si, enquanto solicitava um relatório ao Sistema.
-Outra vez os trocadores catiónicos!! Um dia destes morro frita! Tenho que voltar a Kinshasa-Pit... E o Chefe vai ficar furibundo...
De facto, Orugana era aguardada no Cais do Departamento de Energia por Jean Katanga, o seu superior hierárquico. E a expressão patibular que lhe ensombrava o semblante preconizava uma proverbial fúria.
-Verificaste os Módulos todos?
-Não, Chefe. Estava no 6º Módulo quando o Simbi avariou.
-Vai imediatamente à Engenharia Metabólica substituir os trocadores catiónicos antes que frites. Tens que voltar para os Lagos ainda hoje.
-Mas...?
-Mesmo que não tivesse recebido o relatório do teu Hyper-jet, minha doida, teria apostado que te esqueceste de tomar o crio-banho, e que o Simbi iria avariar...
-Chefe...Euh...
-Desanda!!!
Alia Orugana era extremamente distraída. Era também uma Mutapol, ou seja, um indivíduo de etnia Bantu que morreria se a sua temperatura corporal atingisse os 5º Celsius. O facto, embora indiscutível, ainda espantava a comunidade médica e era geralmente considerado como uma das consequências da III Guerra Mundial. A parafernália de armamento químico e biológico utilizada, os fall-outs radioactivos e as distorções causadas pelas bombas de singularidade exerceram efeitos tão drásticos quanto inusitados.
Katanga lembrava-se bem da tragédia. Era ainda criança quando a primeira geração de mutantes atingiu a puberdade e, literalmente, fritou em frente aos pais. A dimensão do drama e o dogmatismo das Leis de Protecção Biológica e de Demanda Científica e Tecnológica obrigaram a uma investigação exaustiva, que determinou tratar-se de uma mutação genética, logo, restreável, e conduziu a uma solução engenhosa. O Departamento de Engenharia Metabólica modificou profundamente os Fatos de Trabalho em Ambientes Extremos até obter o SIMBIONTIX, que, de forma simplificada, se pode definir como um sistema para-renal, um sistema para-hepático e um sistema meta-endócrino em forma de fato de mergulho, dotado de protecção contra radiações e controlo informático senciente, com uma interface neural simpática e outra parassimpática, sendo carinhosamente designado por Alia como Simbi. O sistema era fabricado em material proto-vivo, que acompanhava o crescimento do mutante desde a puberdade até ao fim da sua vida. As dificuldades de concepção foram, contudo, enormes e se o tacto virtual era um sucesso, o sistema de refrigeração sempre apresentara limitações.
Jean censurou-se enquanto analizava os dados debitados pelo terminal telemétrico dos Módulos. Permitiu-se divagar sobre o passado por demasiado tempo e a verificação dos restantes 14 módulos deveria estar concluida ao final do dia. Os Pits estavam a racionar energia devido às quebras de potência e os sistemas de refrigeração estavam parcialmente desactivados. Os 60º Celsius de temperatura ambiente, acrescidos do agravamento devido à profundidade iriam causar um nefasto impacto muito em breve. E o sofrimento dos 400 milhões de habitantes dos Pits traria o caos.
-Nome e posição?
-Alia Orugana, Física de Fusores Frios, Mutapol.
-Deite-se na marquesa, insira o tubo púrpura na Porta-Externo do SIMBIONTIX e aguarde 50 minutos.
-Afirmativo.
A sensação de calor sufocante e a taquicardia que oprimiam Orugana diminuiram gradualmente de intensidade, enquanto a sua temperatura corporal baixava para os fisiológicos 0,5º Celsius, permitindo-lhe relaxar e aproveitar o descanso forçado. Estava a ouvir música quando Katanga trovejou nos auriculares:
-Vais com Haillé Kabila para os Lagos. Partem às 11:35.
-O Chefe sabe que eu detesto esse tipo! Sempre o detestei, e essa notícia causou-me uma nítida e desagradável sensação pré-cognitiva.
-Alia, vais ignorar a sensação, vais com ele e serás colaborante. Fui claro?
-Como água tridestilada...
-Ah! Alia?
-Sim, Chefe?
-Não vás rasar as águas do Lago Hutu. Há Tempestade Gravítica.
-Epicentro e Raio de Schwarzchild?
-Os dados foram enviados para o Hyper-jet e NÃO VAIS PASSAR A VÔO MANUAL!!!
-Afirmativo, Coronel-Físico.
Katanga desligou incomodado. Andava a apertar com Orugana e ela mostrou-lhe que estava furiosa. Por culpa dos militares é que existiam Mutapols, e estes nunca integravam hierarquias militares. Aliás, só se referiam explicitamente a elas para ofender... E ela era uma Física de Fusores promissora, o melhor piloto de Hyper-jet que ele conhecia e, sobretudo, não era responsável nem pela estranheza da avaria nos Módulos, nem por essa outra herança da Guerra, as Tempestades Gravíticas. Estes fenómenos eram pequenos buracos negros temporários que só afectavam massas, não criando distorções temporais mensuráveis, mas que eram mortíferos para quem cruzasse os céus e se deparasse com uma. Como se o dia não estivesse suficientemente arruinado, abatia-se agora uma destas tempestades sobre o antigo Lago Tanganica, actualmente Lago Hutu.
-Necessito de calma, mas como?!?!
O semblante de Katanga tornou-se ainda mais carregado. Se os rumores fossem minimamente verídicos (e a imposição de Kabila pela Agência Estrutural de Energia assim o sugeria), o caso era muito, muito grave... Kabila era agente do Corpo Energético, o discreto e sinistro Grupo de Combate e Espionagem da Agência e a obrigatoriedade da sua presença nos Lagos indicava que a avaria nos Módulos não era uma simples falha técnica. O eco do vocábulo "sabotagem" corroia-lhe o limite da consciência.
- Está autorizado a descolar, DEhyp/KP04.
-Afirmativo, Controlo.
O Hyper-Jet saiu na vertical de Kinshasa-Pit e, quando atingiu os 40000 pés de altitude, virou para Leste, em direcção à Região dos Grandes Lagos. Era sempre uma visão avassaladora: 50 milhões de pessoas vivendo num buraco escavado na crusta terrestre, ao abrigo da nova vida selvagem, que proliferava na superfície.
-Causa-me sempre um desconforto imaginar toda esta gente num buraco. E a si, Kabila?
-Penso tratar-se de uma forma adequada de organização. Os níveis de radiação e a temperatura média à superfície, a ausência da Camada de Ozono e a toxicidade ainda apreciável da atmosfera, em conjugação com a hostilidade da Nova Vida Selvagem, justificam plenamente os Pits.
-Ainda assim...
Orugana considerou, pela enésima vez, que Kabila era mesmo obtuso e sinistro, resolvendo alhear-se da sua presença e apreciar os vibrantes tons violeta, púrpura e prateado da luxuriante floresta tropical... Embora o termo fosse, na verdade incorrecto. O desaparecimento da Camada de Ozono e a poluição causada pela Guerra provocaram uma verdadeira Revolução Darwiniana e os pigmentos fotossintéticos bacterianos, os mecanismos reparadores do material genético típicos do domínio Archaea e a polivalência metabólica tinham ganho a acelerada corrida evolutiva. A floresta tropical, em termos celulares, pouco diferia de uma colónia de bactérias, tendo obrigado à definição de uma nova classificação taxonómica: domínio metacariótico.
-Controlo dos Lagos autoriza a aterragem, DEhyp/KP04.
-Afirmativo.
Desacelere e efectue a aproximação final.
-Afirmativo.
O Hyper-jet desacelerou e pousou no Cais da Ilha Artificial, sita no centro geométrico do Lago Tutsi, antigo Lago Victória. Tinham demorado 20 minutos a percorrer os cerca de 2000 Km que separavam Kinshasa-Pit da Ilha Artificial, onde estavam instalados os 20 Módulos de Fusão Nuclear Fria e o Fusor Térmico de Implosão FEASER, que asseguravam o fornecimento de energia à República Ecotópica de Afrik-Ilha, a maior ilha do Planeta.
Com efeito, a arma estratégica detonada em Bagdad provocara um sismo que alargara o Mar Vermelho, tendo também a fusão parcial das Calotes Polares contribuido para a remodelação do Mapa-Mundi. O local onde fora Port Said, encontrava-se submerso, distando 300 Km do Noroeste da Península do Sinai e este último já não era um monte. Orugana e Kabila iriam averiguar o que obstava ao contínuo fornecimento de energia a esta ilha-continente.
Orugana ditou o relatório preliminar a Katanga pela segunda vez, volvendo este com com incrédula irritação:
-Não é possível, Orugana! Verificaste os instrumentos de medida?
-Toda a instrumentação foi triplamente verificada ontem, Chefe. E hoje, após obter as primeiras leituras, verifiquei tudo novamente. Insisto na significância estatística dos dados, Chefe. Veja por si.
-Estou a ver... E continuo a não acreditar nestas variações instantâneas e periódicas da concentração em Deutério...
-A concentração cai a zero instantaneamente, mantém-se durante 60 segundos e retoma os valores iniciais também de forma instantânea.
-Regressem. De-briefing daqui a 30 minutos.
-Até já, Chefe.
Estavam perto do Lago Hutu quando o alarme de colisão soou durante meio segundo. Desligou-se de imediato e sofreram um bombardeamento de radiação X, emanado da Tempestade Gravítica.
-O que foi isto?! - Exclamou Orugana.
-NADA!!! Não passará a vôo manual e proseguirá até Kinshasa-Pit. No De-briefing mencionará um vôo sem incidentes.
-Afirmativo.
Orugana remeteu-se ao silêncio. Katanga enviara-a na companhia de um militar... UM MILITAR!!! Agora era claro o motivo da intensa aversão que sentia por Kabila. Após a aterragem, este despediu-se de forma calculadamente informal, mas espantou-se com a seca resposta:
-Até à próxima, Orugana.
-Boa tarde e passe bem, Sargento.
-...?! Bah!!! A tipa topou e não se calou - pensou Kabila - Tanto pior. Amanhã será presa e executada... Talvez antes, se falar demais...
Kabila abandonou o Cais do Departamento de Energia absorto em considerações sobre o comportamento subversivo dos malditos frigoríficos (termo depreciativo que designava os mutapols) e a necessidade premente de declarar a Lei Marcial. Não entendia a brandura dos dirigentes:
-Se eu fosse membro do Colégio Ecotópico... - pensou odiosamente Kabila.
Entretanto, Orugana dirigiu-se ao gabinete de Katanga, furiosa. Entrou de rompante, contou-lhe o sucedido e ia começar a acusá-lo de forma veemente, quando se apercebeu do olhar destroçado do seu Chefe:
-Bravo, Alia!!! Ponderada nas acções e nas palavras, como sempre... A tua atitude para com ele e o facto de comentares a situação comigo garantiu-te a Pena de Morte!!! E, provavelmente, a mim também...
-AQUELE ANIMAL!!! Após o acidente fiquei mais alerta e apercebi-me do pensamentos dele. E quando já estávamos no cais, depois de lhe chamar "sargento", senti-o a ofender-me e a pensar em Lei Marcial. Esse gajo é uma besta!
-É indiferente, Alia. Desmascaraste um Agente do Corpo Energético! Isso é punido com a Pena de Morte.
-Mas...? MAS !?!?
Ambos estavam a olhar para o tanque holográfico quando sentiram o tremor de terra. O tanque holográfico estava, por acaso, a transmitir uma imagem real-time da superfície de Estrutura 2, a velha Lua, pelo que puderam observá-la a brilhar por um momento, em simultâneo com o abalo sísmico. Ainda completamente estupefactos, viram a imagem de Estrutura 2 desaparecer e surgir um texto tridimensional, flutuando ao centro do tanque:
ALIA ORUGANA É AGUARDADA EM EUFRATES ÀS 0900 DE 04.03.517 CTE, MERIDIANO ZERO. O NÃO CUMPRIMENTO SERÁ PUNIDO COM EXECUÇÃO SUMÁRIA.
Katanga estava boquiaberto. Era director do Departamento de Energia de Afrik-Ilha há 16 anos e nunca vira texto no tanque holográfico... Também era incapaz de compreender como se podia enviar alguém a Eufrates, se lá só existia areia vitrificada e água radioctiva. Orugana, que finalmente percebera a real gravidade da sua situação, soluçava e tremia:
-O que é isto tudo, Chefe!?! Estou morta... Morta!!!
-CALMA, ALIA!!!
Katanga falou de forma imperativa, mas abraçou-a e fê-la sentar-se confortavelmente. Contudo, Orugana permanecia inconsolável e quase em choque. Katanga insistiu:
-Para já, sabes que vais viajar dentro de 2 dias.
-Pois, Chefe... Para Eufrates, o Território Morto! E depois?
A Alia que ele conhecia, de resposta pronta e certeira, regressara e Katanga sentiu-se aliviado. A miúda era mesmo forte.
-Não sei responder a essa questão, Alia... Mas acredito que nos vamos tornar a ver e que, nessa altura, já não me chamarás chefe.
-O Chefe está a ser demasiado optimista...
-Não, Alia...
Katanga hesitou, ponderando se devia mencionar informação classificada, mas dada a estranheza de toda a situação e a incerteza do destino de Alia, ignorou todas as premissas protocolares:
-Orugana, escuta-me com atenção. Esse tanque holográfico é gerido pela Força Armada Unitária Estrutural. Um contacto deles é suficientemente bizarro para me levar a acreditar que não te vão levar a Eufrates só para te executarem. Há aqui algo que, naturalmente, me escapa, mas esta situação evoluiu para uma esfera de influência elevadíssima. Agora, aconselho-te a descansar. Amanhã tens o dia livre, mas quero que almoces comigo no Tiki-Tiki, que tem interfaces alimentares para mutapols. Vou obter mais informação e durante o almoço iremos conversar.
Orugana saiu do gabinete de Katanga e dirigiu-se ao seu apartamento. Ensombrada pela situação, as memórias vaguearam até à sua família, morta numa Tempestade Gravítica durante o seu semestre de estágio. Ela encontrava-se no Lago Tutsi, ainda a trabalhar no Fusor Térmico e os pais decidiram viajar até Pretória-Pit, para gozarem uma folga estatal. Um conflito de prioridade civil-militar nos servidores meterológicos desconectou o radar gravitacional do Transportador Comercial e os pilotos não puderam evitar a tempestade... Mais uma vez, os militares foram de uma prestabilidade inestimável!!! Quando chegou à pesada porta isolante da sua casa, Orugana chorava copiosamente.

Sem comentários: