Habitava um estranho barco. Navegava nas águas, ou ancorava nas margens, do Mar Central, designação arcaica que insistia em utilizar, sempre que se permitia dispender algum tempo em devaneio. Alimentava-se do que pescava, de algumas algas cujo sabor apreciava e de fruta, sempre que a podia colher.
Costumara embarcar sem destino ou função definidos, plenamente confiante na sua capacidade de trabalho braçal e nas suas excepcionais condições de saúde. O fluir dos tempos tornou-o solitário e desligado, sendo a comunicação com os seus semelhantes progressivamente mais penosa, até dolorosa.
Tal desconforto levou-o a construir o seu estranho barco e, depois, a optar por não utilizar a voz para comunicar. A ausência de comunicação, primeiro verbal e depois total, aliada ao estado de existência solitária, ou, de forma mais correcta, o "estado sozinho", eram-lhe confortáveis. Dir-se-ia que a vida de nómada do Mar, errando sem pressa nem desejo, lhe mantinha a psique longe da tristeza e da felicidade. E muito longe da dor e do prazer. De um modo gradual e suave, deixou de acostar às zonas com maior fixação humana, nunca ousando abandonar os limites das águas que considerava senhoras da sua existência.
Um dia em que navegava indolente e afastado da costa ocidental, foi perturbado pela presença de um enorme barco de aspecto sinistro. De um dos bordos deste, desceu um bote de côr e textura desconhecidas, com um grupo de homens vestidos de igual no seu interior. Estes aproximaram-se da sua embarcação de madeira de cipestre e, quando a cerca de 60 côvados, apontaram-lhe uns paus ocos e cinzentos, que lhe causaram uma sensação desconfortável.
Um dos homens tentou comunicar verbalmente com ele, mas nada compreendeu do som por ele emitido. Outro homem sugeriu-lhe, por intermédio de gestos, que levantasse os braços e achou sensato obedecer à indicação. Os homens abordaram o seu barco. Aquele que gesticulara aproximou-se cautelosamente e estendeu-lhe uma estranha túnica, com espaço para os braços e um forte odor a pez. Aceitou a túnica com gravidade, vestiu-a e apreciou o facto de o homem ter voltado a palma da mão direita para si.
Foi conduzido no pequeno bote com naúseas crescentes. O fedor a pez e ferrugem parecia emanar de todos os objectos que estes homens manipulavam. Embora satisfeito com o reboque do seu barco e por não terem exercido violência sobre si, não conseguiu evitar os vómitos quando foi içado para bordo da grande embarcação. Os homens, aparentemente assustados, emitiram sons entre si e decidiram levá-lo rapidamente, através de um labirinto de corredores de metal, até uma sala interior branca, que cheirava a sândalo, onde era aguardado por um homem de barba e cabelos brancos, vestido com uma túnica branca com botões.
O odor a sândalo e a alvura da sala reconfortaram-no e conseguiu recuperar o domínio das entranhas. Nesse instante, observou aquele que lhe entregara a túnica a segredar algo ao homem de barba. Este fez um gesto com a mão e emitiu alguns sons, talvez instruções para ser deixado a sós com o... prisioneiro - apesar da ausência de violência, sentia-se impotente e afigurava-se-lhe ajuizado acatar as instruções que recebia.
Uma vez a sós com o homem de barbas, reparou como este o olhou intensamente nos olhos, levantou a mão direita, de palma voltada para si e lhe sorriu. Prontamente lhe retribuiu o sorriso, pleno de alívio e satisfação.
O homem de barba e bata tomou um pequeno objecto cilíndrico e separou uma parte dele, expondo uma secção cónica curta que terminava numa fina ponta de metal. Tomou também um rectângulo de um material branco e maleável e, com o objecto pontiagudo, traçou uma forma de escrita no rectângulo branco, voltando-o para si.
Gilgug olhou para o rectângulo branco e não pôde conter uma gargalhada, surpreendendo-se com o timbre ressoante e o tom muito grave da sua voz. Embora a grafia fosse um pouco invulgar, tratavam-se, indubitavelmente, de caracteres hebraicos. Teria preferido grafia suméria, mas a comunicação estava assegurada.